domingo, 31 de maio de 2009

Agua Seca


ÁGUA SECA


Olhe seu moço, que eu juro que lhe digo, e digo porque digo, que é assim, pra modo de vós me entender: que eu me faço de fortidão.
Falo porque falo e tenho dois olhos de coração: me olhe e veja, que aqui por estas paragens, inté o roçado do Capelão, que nunca que vi tamanha estiagem; nunca passei tamanha precisão.
Inté estas mãos, calejadas de sofridão, cortaram a terra queimada, muito pra baixo do torrão, na busca de água escondida, que minha pele fez cicatriz de tanta poça morta batida.
Mas não me aporrinho, não, qual o quê? Mesmo que inté esta mão nem pão tenha pra cortar, continuo meu vagar, campeando a caatinga, na fome de água encontrar.
Mais de muitas madrugadas e cem braçadas fiz para procurar, o senhor vá pondo seu perceber, que nesta terra o castigo é o arder. O brazeiro é tanto que inté cobra e “escurrupião” faz desaparecer. E nós vivemos assim, de todo seco e de uma gota à mercê.
Entre um tomar de repouso e aguardo, logo saio eu talmente como faço, pra trazer água pra minha mulher e três calanguinhos.
“Arreparre” num doutor que uma vez palavreou que nosso planeta é feito tudinho de água. Prosa tonta. Não ligo, faço de conta. É de se lascar estes homens que botei sismo, que levaram este tal liquido bem longe deste lugar. Vi falar também dum colírio que se bota nos “óio” pra modo de bem enxergar. Mas este, nem o doutor há de ser golpista, tal o que, pois que nós bebiamos tudo antes de curar a vista.
Mire veja, nunca vi, que triste sonhar, e que aqui não há os tempos de água. Quando chuva há, tosca ela é, seca, que mais “ajudia” o sentimento e faz nosso pensamento se inclinar pra heresia.
Pego logo duas cabaças de olho largo: sou nascido diferente. Fui ter com o pé de goiaba, que de longe eles vem cortar; daí se “arretira” um galho feito “furquia”, se lambe e se anda com o graveto. Conforme o retiro vai se “agrandando”, meu coração vai apertando, na esperançca de ver o tal galho entortar, mostrando o esconderijo que a água quer morar. Mas nada é hora ainda.
Volto iludido, com a boca seca, rachada; nem uma gota prá cuspir o pó da terra batida do cascalho da caatinga. O gado, pergunta, já se foi.
Olhe seu moço que eu lhe conto que pior morrer de fome, que a sede que queima lá dentro do peito.
Duas madrugadas depois recolhi meus apetrechos: alforje e chapéu de gibeira.
Escolhi a retornança diferentemente: tomei o rumo da trincheira e saí com os dois balaios. Desci a ribanceira. Segui a marcha estradeira.
Os galhos do espinheiro não tiveram brincadeira. Sem dó me rasgava, triscando o pouco de pele “desaprotegida” que "inda" restava. Ficou qual peneira.
Eu e o dia, meio sem vida, no entardecer, desolado, escapei pro lado e orei o que a benzedeira já tinha me orado. Num tinha mais precisão de olhar. Água ali não havia de brotar. Tive mesmo de voltar.
Olhei pras crianças e me angustiei de quase chorar.
Mas homem aqui não chora, pois seu moço, que nesta sequidão de tudo lhe pode faltar. Para o bem, se uma gotinha de lágrima ainda se fizesse mostrar, se de meu fole ainda tivesse saído, teria eu, com tudo eles, ela dividido.

3 comentários:

  1. Eu que vi alguns de seus textos,lhe digo que este é o melhor que já li.A imagem da angustia em não poder beber nem uma gota de lágrima é realmente incrível...

    Lindo!

    Lívia

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  2. Oi Maurici!!! Dá uma olhadela no e-mail que te enviei...
    abração
    gabi

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  3. maurici: desde que você me mandou aquele trabalho que eu pedi, continuo com a mesma impressão. Na verdade nos seus textos, você faz um "esperto jogo de palavras" e é justamente isso que me levou ao sistematico movimento do metrônomo, cuja oscilação você enfatisa pelo seu jeito de ler.
    Isto "di per se" já dispensa qualquer sentido.
    Bruna

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