quarta-feira, 10 de junho de 2009

Carta ao Tio Cícero






Estimado Tio Ciço.


Esperanceio que meu estimado Tio, mais Cleonice, Deoci e Nivonildo estejam muitíssimo bem. Aproveitei Claudecir, o escambeiro de sal e apetrechos, prá levar esta carta. Ele sempre tem trazido também notícias alumiadas dos seus e dos conhecidos nossos.É pois então que proseio esta justíssima benção corridamente em nome de todos do lado de cá.


Esta carta é para lhe dar conta da passagem que estou pronto a fazer. Tenho no Tio , como é bem sabido longamente, admiração e devoção.


Pois que agora tive ideiando, conforme combinado bastante antes, em ir-me indo, vestindo-me de Rio.

Quero então falar-lhe daquela canoa que só em ti posso confiar tal construção. Lhe digo de uma canoa que seja de um talho só de nobre Nogueira seca, calado médio e que seja eu seu único passageiro; proa agulhadinha prá bem deslizar e popa quebrada em quadrado prá modo de sustentar a cadeira de tabuinha.


Tio, se é de seu gostar, lhe peço construir esta proeza de que toda as águas e redondeza possa se admirar. Só lhe peço o reservado . Sabe como penso e como pensa o povo destelhado: caçoa antes do dia de ouro. Quanto a eles fique o Tio tranquilinho que o Rio também castiga de quem zomba. É do nadador zombadeiro que ele gosta e nas curvas e torvelinhos leva o incauto pro sumidouro.


Eu não peleio com o confundimento que o povo faz, muito menos com a ciência que o homem for capaz. Apenas faço o que da lenda é arrazoado. Não me ponho de arrogado. Não tenho advogado nem capataz.


Eu sou homem de Rio e de superfície também.

O dia em que vou indo ainda ninguém sabe com certeza, o dia mais tarde vai ser o dia em que o Rio me leva prá profundeza.

Talmente como no dia do meu pai, seu irmão, já corria de longe a estória do Rio e por ele nossa afeição. Não é tardar então me preparar teimosamente prá continuar tal tradição.


Só não conte, Tio Ciço, com meus olhos que já quase viraram redemoinho; minha boca a toca do bagre; minha pele a escama do peixe grande; meu pulmão as foles dos peixes; minha batida de coração as marolas vagarosas que vão e voltam da margem. Minhas lágrimas já não são mais que as do Rio e minha passagem tal qual a água que por ele desce.Meu corpo já não nada senão as curvas do Rio, meu xixi seu aguaceiro, minha pele suas margens, os capins meus pelos, meus bichos as rãs e sapos e a lua cheia não faz nada em mim que não faça nele. As pinguelas e pontezinhas que cruzam são as pessoas que já passam por mim também: algumas nem se apercebem, outras se demoram um pouco mais. Sumo, de vez em quando, como evapora da minha superfície o suor e evapora do Rio sua água quando o sol arde logo de manhanzinha. Minha aperreação é a pororoca e minha apreciação é a calma da correnteza que corre no tempo que deve.


Eu então, estimado Tio, me vou com ele. É a garantia dele estar sempre vivo conformante a lenda. Quando eu for, todos vão me conhecer, mas só o Rio me sabe. Entrementes, me sabe mais do que me sei.


Por isto, Tio Ciço, não bote reparo na minha ausência, nem idéie que ela será falimento para a família. Eu nunca terei ido, de verdade, na canoa; nem meu Tio, terá feito, de verdade, esta canoa.

E, se um dia a mãe assuntar, na cantiga de ninar, pode observar que eu estarei mais perto do que ela pode imaginar.O dia será aquele que eu quase sei e o retorno, não sei. Mas sei que este Rio me é reservado. Eu e ele conforme acordado: somos de cada um o trocadilho acertado – nossas mãos são uma só e nosso destino perpetuado.

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